Revista de Medicina Chinesa Brasil

ENTREVISTA ESPECIAL “Quatro Histórias na Medicina Chinesa”

ACESSO ONLINE: http://www.ebramec.edu.br/revista/revista-medicina-chinesa-16a-edicao/

Por Fernando  Davino Alves

16a Edição
Páginas 44, 45
  • Você poderia descrever onde surgiu o seu interesse pela Medicina Chinesa e Acupuntura?

No final da década de 80 minha mãe sofreu de uma enfermidade chamada “esporão de calcâneo” e foi tratada com acupuntura. Meu pai também, com algumas lesões musculo esquelético, foi tratado com acupuntura e eu com uns 10 a 13 anos de idade, não me lembro ao certo, sempre acompanhava meus pais nas idas a Belo Horizonte para tais tratamento. Minha irmã que é nutricionista acabou se interessando pela acupuntura e fez um curso de especialização que culminou em uma viagem a China em 1996. Quando ela retornou ao Brasil começou a ter bons resultados na clínica e isto me chamou atenção. Naquele momento eu estava fazendo vestibular para Medicina Ocidental. Em casa vez ou outra eu arriscava em abrir alguns livros de acupuntura da minha irmã e sempre os fechava com aquela sensação estranha de não ter entendido nada. E quem me conhece sabe que eu tenho uma ânsia voraz pelo conhecimento e aqueles livros passaram a ser um desafio para mim. Então, eu passei a abrir tais livros com mais frequência e lia e relia os capítulos sem muito entendimento. Acho que estes foram os primeiros contatos que tive com a MTC. Agora o meu interesse real surgiu dentro do curso de MTC que fiz no Brasil, onde comecei a ter respostas a algumas perguntas simples do meu cotidiano, que nunca tinham sido respondidas.

  • Você tinha formação em Acupuntura no Brasil. Como foi esta formação?

Sou formado em Medicina Tradicional Chinesa pela cooperação acadêmica IMAM-BUCM de 2001 a 2006 (curso não reconhecido pelo MEC). Em 2001 surgiu em Belo Horizonte a oportunidade que eu tanto esperava, um curso de MTC em cooperação com a maior universidade de MTC do mundo, a Universidade de Medicina Chinesa de Pequim (BUCM – Beijing University of Chinese Medicine). O curso contemplava disciplinas da medicina chinesa, ministradas por professores chineses da BUCM, as aulas ocorriam com tradução simultânea CN-PT. Além disso tínhamos uma residência obrigatória de um ano nos hospitais chineses filiados a BUCM, que no final do curso não foi viabilizado e sendo uma visita de reconhecimento de campo por um mês. A titulação seria dada pela BUCM, com o diploma emitido pelo Ministério da Saúde e Educação da China, que também não ocorreu. E com tentativa de homologação no MEC, do curso de MTC do IMAM, que também não ocorreu.

  • Quando surgiu este desejo de buscar na China o seu aprofundamento profissional?

Na verdade não foi um desejo de buscar a China para um aprofundamento profissional, como comentei na resposta anterior, tínhamos dentro da grade curricular do IMAM-BUCM uma residência inicial de um ano na China, que foi inviabilizada e que se tornou apenas uma visita de reconhecimento de campo, como acontece com as maiorias dos grupos de brasileiros que vem a China. Portanto, eu já vim a China preparado para ficar. Não sabia muito bem o que deveria fazer, mas sabia que deveria ficar um tempo na China nem que fosse para aprender a língua chinesa. A inviabilidade da residência de uma ano como foi proposta inicialmente foi um ponto que eu não concordei muito. Eu achava extremamente importante fazer a residência de um ano, que inicialmente nos foi proposta, para praticar  e melhorar a qualidade do meu trabalho. A questão é que chegando aqui na China e passando pelo um mês de observação clínica eu percebi que o “buraco é muito mais em baixo” e que sem língua chinesa iríamos ficar dependentes de tradutores deficientes e muitas vezes desqualificados para darmos os passos iniciais para a validação de um diploma da BUCM, que passou a ser meu desejo de busca na China.

  • Poderia partilhar com nossos leitores como foi a sua primeira semana na China?

Eu hoje posso dizer que fui um corajoso. Vim a China em 2006, num período de transição, onde não se tinha quase nada em pinyin (transliteração fonética dos logogramas) e muito menos em inglês. Tudo que se tinha eram logogramas. Eu vim sozinho! Decidi vir separado do grupo. Em fim, cheguei aqui uma semana antes, na semana do meu aniversário, pronto para completar meus 30 anos. A primeira impressão foi o impacto da poluição, céu branco acinzentado e um calor abafado. Os odores bem diferentes e uma mistura muito louca de cores. Uma estranheza muito grande com a segurança. Eu morria de medo de andar a noite em Beijing, pois a cidade era a meia luz em quase todos os lugares e na cabeça de um brasileiro isso seria um perigo eminente. Andei muito de metrô, passeei pela maioria dos templos e palácios famosos como: Cidade Proibida, Templo do Céu e o Palácio de Verão. Comprei muita coisa, pois era tudo barato demais. Fiz amigos na Embaixada do Brasil em Pequim e quando mal percebi já estava dentro da casa dessas pessoas.

  • Como foi a vida de um brasileiro na China?

Essa é uma pergunta muito relativa. Se você um expatriado, que tem uma empresa ou entidade por traz te dando suporte e te bancando, sua vida na China vai ser uma maravilha. Agora, se você forum estudante, se prepare que nem sempre sua vida vai ser muito boa. Eu fui um estudante e um estudante desnorteado, sem a menor orientação, seguindo o instinto e o coração. Errei muito, paguei caro pelas escolhas que fiz, mas acho que hoje olhando para trás, vejo todo meu sofrimento e todos meus erros como um grande aprendizado. Hoje eu sei como fazer certo porque errei muito. Nem sempre a vida é bela e o caminha como nos filmes ou ideais que temos do que é ser correto. A minha vida aqui foi dura! Passei fome com dinheiro no bolso, porque não sabia pedir comida. Lembrando que na minha época cardápio na China não tinha fotos, não tinha nada em pinyin ou inglês. Passei frio até descobrir que as roupas que estava usando não eram corretas. Tive muito medo, porque pequenos problemas se transformavam em algo inacreditável. Vocês não imaginam o que é a polícia chinesa bater na sua porta e você não entender o que eles estão falando e os sujeitos super mal preparados se irritando, aumentando o tom de voz e você não sabendo o que pode acontecer (risos). Hoje posso rir! Bom, mas nem tudo foi desgraça! Chegamos aqui e o nosso dinheiro, o real, era quatro vezes mais valorizado que o yuan, dinheiro chinês, e aí o poder de compra era grande. Morava num apartamento bacana, comprei um tanto de coisas que sempre sonhei, passeei bastante, conheci um tanto de gente do mundo inteiro e ai esse globo terrestre ficou pequeno. Aquele mineirinho pacato passou a ser um homem do mundo.

       Acho que na China, a vida de um brasileiro ou a vida de um estrangeiro de qualquer país é mais ou menos igual. Um ponto que destacaria é a questão do relacionamento. Eu vim “namorido”, namorando quase casado. Durante quatro anos eu tive uma vida mais quieta, não era de noitada, não bebia, vida bem focada nos estudos e na sobrevivência. Em um momento eu passei a caminhar sozinho e ai passei a conhecer o outro lado que ainda não tinha conhecido. Passei a sair mais a noite, comecei a beber e conhecer a galera da balada. Eu tinha que sobreviver! Eu vi várias pessoas perdendo casamentos aqui, e vi outros tantos se unindo por aqui. Beijing é um lugar intenso com muitos estímulos e ciladas. Aconselho a quem vier e decidir ficar, que tenha um tempo de estada predeterminado e um projeto de vida muito, mas muito bem claro, ou então você poderá correr o risco de ser dragado pelo imã que se tem por aqui e se perder pelo caminho. Conselho de quem errou muito por aqui. Aprendizado com o erro dos outros não deixa de ser aprendizado. Se liguem!

  • Quais as principais dificuldades que você poderia destacar para nossos leitores?

A grande dificuldade básica é a língua chinesa, se você consegue transpor a barreira da língua chinesa, sua vida já vai ficar bem mais tranquila. Para nós brasileiros a distância é um fator complicador, não dá para você chegar para alguém aqui e dizer: “esse feriado eu vou para casa”, ou “vou visitar minha tia no final de semana em BH”. A realidade é que estamos pelo menos 25h de viagem do Brasil e com um custo de pelo menos 2 mil dólares. A comida é outro fator, muitos brasileiros não se acostumam com a comida chinesa, mas hoje na China isto ao meu ponto de vista não é um grande problema, principalmente nos grandes centros como Beijing ou Shanghai, que tem comidas típicas do mundo inteiro. Brasileiro que passa fome na China é um desinformado. No meu caso minha maior dificuldade não foi a língua, não foi a distância, não foi a comida e sim a solidão. Sou filho mais novo de uma família de 9 irmãos. Minha família tem uma certa aversão a tecnologia, tenho até conseguido algumas melhorias, mas é uma tarefa árdua que tenho que exercer. Meus parentes realmente não gostam de tecnologia, muito ao contrário de mim que amo e isso me gerou uma carência muito grande, pois a tecnologia é o grande aliado que encurta a distância, que trás as pessoas que você ama para perto e que te conforta naquele momento de tristeza e muitas vezes eu me vi sozinho, já no caso da MTC a principal dificuldade é a superação de ser um estrangeiro praticando uma medicina tradicionalmente da China. Já passei por muitas situações que o paciente chinês olhava para mim e dizia “lao wai, lao wai”, que significa forasteiro ou pessoa que não é local. Tive que trabalhar e contornar essas situações, mostrando o que eu sei e conseguindo a confiança do chinês. Já tive muitas situações cômicas de pavor chinês contra minha atuação como profissional… (risos). Um dia eu conto esses casos (risos).

  • Mas também creio que não sejam apenas dificuldades, quais seriam as principais vantagens de estudar na China?

Estudar na China te abre um leque de opções e as portas do mundo. Como eu disse, hoje eu sou um homem conectado com o mundo. Tenho amigos de todas as partes e aprendi muitas coisas de outras culturas e países. No caso da MTC estar na China é estar no centro do conhecimento. Aqui você pode vivenciar a MTC, entender a cultura e filosofia fora dos livros. Pode praticar com 100% de material de trabalho, tem um amplo material de pesquisa e isso tudo dentro de um sistema já estabelecido, que são as universidades de MTC, que hoje eu não sei realmente se são os melhores lugares para estudar a MTC, mas que são uma boa escolha para o começo. 

  • Você poderia destacar um professor chinês que se destacou neste seu período de estudos na China?

Não tive um professor em especial. Tive uma instituição. Tenho formação pela BUCM que é uma escola que segue a linhagem “shanhan pai” (伤寒派), ou seja, uma escola baseada nas teorias do Clássico do ataque pelo frio, “shang han lun” (伤寒论) e que tem o Clássico do Imperador Amarelo “Huang di nei jing” (黄帝内经) como base teórica. Portanto, posso destacar que tenho uma formação acadêmica clássica. Já na minha pós graduação, mestrado em acupuntura-moxabustão e tuina, aí sim eu tive alguns professores que se destacaram como meu orientador, o Professor Zhao baixiao (赵百孝).

  • Durante a sua estada na China, quais foram as cidades em que passou ou que representam mais o estilo de aprendizado que adquiriu na China?

Eu passei meus quase 9 anos de China basicamente em Beijing, dentro da Universidade de Medicina Tradicional Chinesa de Pequim. Meus professores e minhas relações são todas do norte da China e diretamente relacionados a BUCM.

  • Para finalizar gostaria de agradecer o seu tempo com nosso leitores e gostaria de pedir que deixasse algumas palavras finais.

Eu gostaria de me despedir dos leitores com uma frase que é meu guia atualmente no estudo da MTC. Gravem bem e guardem com carinho, pois é uma dica, uma preciosidade, de quem dedicou grande parte da vida estudando essa medicina e que vive atualmente no antro do conhecimento da MTC…

       A BUSCA ESTÁ NO PASSADO!

Fernando Davino Alves é graduado em Medicina Chinesa pela respeitada Universidade de Medicina Chinesa de Beijing e Mestrando em Acupuntura-Moxabustão e Tuina pela Universidade de Medicina Chinesa de Beijing sob orientação do Dr. Zhao bai xiao. Fernando é um dos mais ativos tradutores para os grupos de brasileiros que buscam cursos de curta duração na China. 
Facebooktwitterlinkedinmail

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *